segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Da família nuclear procriativa aos novos arranjos possíveis.

Quando inicio qualquer discussão acerca do tema “família”, torna-se algo da ordem do impossível tentar alguma reflexão livre dos preceitos morais cristãos. No presente trabalho abro mão de qualquer suposta e presunçosa neutralidade, admitindo, por mais que sem gostar, ter um discurso arraigado e atravessado pela moral judaico-cristã. Feito este primeiro esclarecimento dou continuidade a esta tentativa de revisar algumas publicações acadêmicas sobre as novas formas e constituições familiares apropriando-me dos aparatos teóricos das perspectivas psicossocial e psicanalítica, usando a última não como uma guardiã da ordem social (como muitos mal informados insistem) ou abordagem principal de análise; a escolha foi por simples conforto e familiaridade teórica.
            O que há de realmente novo? Acredito que podemos considerar “novo” apenas as reorganizações coletivas sobre o tema “família”, advindos de processos como as novas condições de procriação e mudanças nas formas possíveis de filiação e criação dos filhos. Fenômenos que nos fazem além de espectadores, participantes ativos desta certa continuidade de um processo de mudanças cuja origem remonta o fim do século XVIII com a Revolução Industrial, processo este ainda mais intenso após a volta dos homens dos campos de batalha da Primeira Guerra que encontraram as mulheres se adaptando àqueles campos que antes eram quase que exclusivamente masculino: vida pública e trabalho remunerado. Nesta década que se seguiu vieram os “anos loucos”, uma “nova geração” questionadora e idealista proclamando que aquela fora a “guerra para acabar com todas as guerras”, mal sabiam que dali para frente o processo de guerras estava apenas começando.
            A utopia positiva do século XIX deu lugar a um progressivo individualismo desenfreado e extravagante, gerando acirradas disputas e incrementando debates sobre o lugar dos sexos no mundo. “Tais movimentos resultaram em uma nova organização sociopolítico-econômica” de acordo com Paulo Ceccarelli possibilitando uma discussão absolutamente nova sobre a sexualidade, “principalmente em torno dos perigos de separar sexualidade de procriação”.
            Se pensarmos que o que está para a ordem do humano em sua constituição pouco há de predeterminado além da cultura que o cerca, e é exatamente a partir desta que ele constitui-se pela “tomada do valor do modelo” a partir de processos de identificação; o Um acaba sendo constantemente atravessado e ligado pelo Todo, o sujeito, ator e espectador da sociedade que vai “transformando a subjetividade a partir da possibilidade de recriar padrões introjetados”, como explicita Elizabeth Zambrano, “a diversidade das configurações familiares de outras sociedades permite afirmar que parentesco e filiação são sempre sociais” e a psicanálise muito contribuiu para a legitimização desta diversidade de expressões adotadas pelas famílias, que não deve se restringir e submeter aos dogmas cristãos e merecem sim o estatuto e nomeação de “família”, como brinca Millôr Fernandes: família é um grupo de pessoas que têm as chaves da mesma casa, e ponto. Nomear esses novos arranjos familiares, parentalidades que ainda para muitos é impensável, faz possível que deles se fale, “que nasça uma existência discursiva, indispensável para indicar uma realidade, possibilitando seu estudo e, principalmente, sua problematização”, e esta é a idéia que transpassa por todos os textos: essas famílias existem e funcionam de maneira tão sadia como qualquer outra que se encaixe no padrão heteronormativo e patriarcal; segundo Vaitsman, “... o que caracteriza a família e o casamento numa situação pós-moderna é justamente a inexistência de um modelo dominante, seja no que diz respeito às práticas, seja enquanto um discurso normatizador das práticas.” Ignorando as críticas quanto ao uso do termo pós-modernismo fora do campo da arquitetura, mas mantendo a lógica de raciocínio do autor, temos dever ético de respeitar as repercussões que estas novas formas de construção do mito individual e produção da verdade singular do sujeito trazem a tona seja na solução heterossexual ou na homossexual.
            A questão que mais vejo ganhando destaque quando se fala sobre este tema é a da homoparentalidade, e é exatamente ela que coloca para a antropologia questões que atingem um dos campos mais tradicionais da disciplina, assim como para a própria psicanálise, é necessário seguir esta tendência disso o que comumente chamamos de pós-modernismo de relativizar os termos e dessacralizar, subverter esta lógica que toma como apoio a ordem natural das relações entre os sexos, fazendo impensável qualquer outra configuração de família que não seja composta por um “pai-homem”, “mãe-mulher” e filhos, como vimos há alguns dias ser aprovado (grande parte pela incômoda bancada evangélica ou outros fundamentalistas retrógrados), foi instaurado o Estatuto da Família pela PL 6583/2013, no dia 24/09/2015, definindo e limitando como família a união entre um homem e uma mulher, discriminando ainda mais outros arranjos familiares que não procriam, colocando os laços biológicos de maneira infundada, em um patamar mais alto que a parentalidade social.
            Argumentos dos mais ignorantes e normatizadores são utilizados na tentativa dos moralistas de marginalizar pais e mães homossexuais, travestis e transexuais; até mesmo à própria psicanálise eles chegam a recorrer para afirmar que é necessária a diferença sexual no real do corpo dos pais para que a criança “resolva” seu Édipo, como fez Malafaia em uma entrevista com Marília Gabriela enquanto colocava à mesa seu pedaço de papel apelidado de diploma que deveria corroborar com sua suposta formação em Psicologia... Para desconstruir discursos como os de Malafaias, Felicianos e Bolsonaros dois dos autores lidos fazem uma leitura mais atenta das teorias da sexualidade freudianas e reafirmam que não existe prejuízo nenhum a uma criança por ser criada pelo modelo homoparental, como traz Ceccareli, “as conclusões de um trabalho em pedo-psiquiatria em Bordeaux, França, com 58 crianças que têm pais do mesmo sexo, mostrou que o desenvolvimento psicossexual destas crianças é tão normal quanto o de qualquer outra”, e acrescenta a fala do médico autor da pesquisa, “ao que tudo indica, a homopaternidade não constitui, em si, um fator de risco para as crianças; elas vão bem”, então essa tão aclamada “crise das referências simbólicas” a qual tanto se referem esses que fazem o mal uso da descoberta freudiana, não alteram os processos de subjetivação e essas tão aclamadas “crises” que enchem a boca daqueles que prestam desserviço à sociedade, “longe de provocarem uma desestruturação social, atestam a força do simbólico, da metáfora, e mostram que o problema da homopaternidade não pode ser tratado pelo viés de visões nostálgicas que tentam transformar em normas, soluções que pertencer a organizações sociais, e ordens simbólicas não mais sustentáveis na pós-modernidade”.




Falemos destes novos arranjos... ou pior.