Quando inicio qualquer
discussão acerca do tema “família”, torna-se algo da ordem do impossível tentar
alguma reflexão livre dos preceitos morais cristãos. No presente trabalho abro
mão de qualquer suposta e presunçosa neutralidade, admitindo, por mais que sem
gostar, ter um discurso arraigado e atravessado pela moral judaico-cristã.
Feito este primeiro esclarecimento dou continuidade a esta tentativa de revisar
algumas publicações acadêmicas sobre as novas formas e constituições familiares
apropriando-me dos aparatos teóricos das perspectivas psicossocial e
psicanalítica, usando a última não como uma guardiã da ordem social (como
muitos mal informados insistem) ou abordagem principal de análise; a escolha
foi por simples conforto e familiaridade teórica.
O que há
de realmente novo? Acredito que podemos considerar “novo” apenas as
reorganizações coletivas sobre o tema “família”, advindos de processos como as
novas condições de procriação e mudanças nas formas possíveis de filiação e
criação dos filhos. Fenômenos que nos fazem além de espectadores, participantes
ativos desta certa continuidade de um processo de mudanças cuja origem remonta
o fim do século XVIII com a Revolução Industrial, processo este ainda mais intenso
após a volta dos homens dos campos de batalha da Primeira Guerra que
encontraram as mulheres se adaptando àqueles campos que antes eram quase que
exclusivamente masculino: vida pública e trabalho remunerado. Nesta década que
se seguiu vieram os “anos loucos”, uma “nova geração” questionadora e idealista
proclamando que aquela fora a “guerra para acabar com todas as guerras”, mal sabiam
que dali para frente o processo de guerras estava apenas começando.
A utopia
positiva do século XIX deu lugar a um progressivo individualismo desenfreado e extravagante,
gerando acirradas disputas e incrementando debates sobre o lugar dos sexos no
mundo. “Tais movimentos resultaram em uma nova organização
sociopolítico-econômica” de acordo com Paulo Ceccarelli possibilitando uma
discussão absolutamente nova sobre a sexualidade, “principalmente em torno dos
perigos de separar sexualidade de procriação”.
Se
pensarmos que o que está para a ordem do humano em sua constituição pouco há de
predeterminado além da cultura que o cerca, e é exatamente a partir desta que
ele constitui-se pela “tomada do valor do modelo” a partir de processos de
identificação; o Um acaba sendo constantemente atravessado e ligado pelo Todo,
o sujeito, ator e espectador da sociedade que vai “transformando a
subjetividade a partir da possibilidade de recriar padrões introjetados”, como
explicita Elizabeth Zambrano, “a diversidade das configurações familiares de
outras sociedades permite afirmar que parentesco e filiação são sempre sociais”
e a psicanálise muito contribuiu para a legitimização desta diversidade de
expressões adotadas pelas famílias, que não deve se restringir e submeter aos
dogmas cristãos e merecem sim o estatuto e nomeação de “família”, como brinca
Millôr Fernandes: família é um grupo de pessoas que têm as chaves da mesma casa,
e ponto. Nomear esses novos arranjos familiares, parentalidades que ainda para
muitos é impensável, faz possível que deles se fale, “que nasça uma existência
discursiva, indispensável para indicar uma realidade, possibilitando seu estudo
e, principalmente, sua problematização”, e esta é a idéia que transpassa por
todos os textos: essas famílias existem e funcionam de maneira tão sadia como
qualquer outra que se encaixe no padrão heteronormativo e patriarcal; segundo
Vaitsman, “... o que caracteriza a família e o casamento numa situação
pós-moderna é justamente a inexistência de um modelo dominante, seja no que diz
respeito às práticas, seja enquanto um discurso normatizador das práticas.”
Ignorando as críticas quanto ao uso do termo pós-modernismo fora do campo da
arquitetura, mas mantendo a lógica de raciocínio do autor, temos dever ético de
respeitar as repercussões que estas novas formas de construção do mito
individual e produção da verdade singular do sujeito trazem a tona seja na
solução heterossexual ou na homossexual.
A
questão que mais vejo ganhando destaque quando se fala sobre este tema é a da
homoparentalidade, e é exatamente ela que coloca para a antropologia questões
que atingem um dos campos mais tradicionais da disciplina, assim como para a
própria psicanálise, é necessário seguir esta tendência disso o que comumente
chamamos de pós-modernismo de relativizar os termos e dessacralizar, subverter
esta lógica que toma como apoio a ordem natural das relações entre os sexos,
fazendo impensável qualquer outra configuração de família que não seja composta
por um “pai-homem”, “mãe-mulher” e filhos, como vimos há alguns dias ser
aprovado (grande parte pela incômoda bancada evangélica ou outros
fundamentalistas retrógrados), foi instaurado o Estatuto da Família pela PL
6583/2013, no dia 24/09/2015, definindo e limitando como família a união entre
um homem e uma mulher, discriminando ainda mais outros arranjos familiares que
não procriam, colocando os laços biológicos de maneira infundada, em um patamar
mais alto que a parentalidade social.
Argumentos
dos mais ignorantes e normatizadores são utilizados na tentativa dos moralistas
de marginalizar pais e mães homossexuais, travestis e transexuais; até mesmo à
própria psicanálise eles chegam a recorrer para afirmar que é necessária a
diferença sexual no real do corpo dos pais para que a criança “resolva” seu
Édipo, como fez Malafaia em uma entrevista com Marília Gabriela enquanto
colocava à mesa seu pedaço de papel apelidado de diploma que deveria corroborar
com sua suposta formação em Psicologia... Para desconstruir discursos como os
de Malafaias, Felicianos e Bolsonaros dois dos autores lidos fazem uma leitura
mais atenta das teorias da sexualidade freudianas e reafirmam que não existe
prejuízo nenhum a uma criança por ser criada pelo modelo homoparental, como
traz Ceccareli, “as conclusões de um trabalho em pedo-psiquiatria em Bordeaux,
França, com 58 crianças que têm pais do mesmo sexo, mostrou que o
desenvolvimento psicossexual destas crianças é tão normal quanto o de qualquer
outra”, e acrescenta a fala do médico autor da pesquisa, “ao que tudo indica, a
homopaternidade não constitui, em si, um fator de risco para as crianças; elas
vão bem”, então essa tão aclamada “crise das referências simbólicas” a qual
tanto se referem esses que fazem o mal uso da descoberta freudiana, não alteram
os processos de subjetivação e essas tão aclamadas “crises” que enchem a boca
daqueles que prestam desserviço à sociedade, “longe de provocarem uma
desestruturação social, atestam a força do simbólico, da metáfora, e mostram
que o problema da homopaternidade não pode ser tratado pelo viés de visões
nostálgicas que tentam transformar em normas, soluções que pertencer a
organizações sociais, e ordens simbólicas não mais sustentáveis na
pós-modernidade”.